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24 de Abril de 2024
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    Casa de prostituição e política criminal

    Publicado por Nova Criminologia
    há 13 anos

    Recentemente o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar habeas corpus ( HC 104467/RS, Relatora Ministra Cármen Lúcia) visando a trancar ação penal por crime de casa de prostituição, assim decidiu:

    EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CASA DE PROSTITUIÇAO. APLICAÇAO DOS PRINCÍPIOS DA FRAGMENTARIEDADE E DA ADEQUAÇAO SOCIAL: IMPOSSIBILIDADE. CONDUTA TÍPICA. CONSTRANGIMENTO NAO CONFIGURADO. 1. No crime de manter casa de prostituição, imputado aos Pacientes, os bens jurídicos protegidos são a moralidade sexual e os bons costumes, valores de elevada importância social a serem resguardados pelo Direito Penal, não havendo que se falar em aplicação do princípio da fragmentariedade. 2. Quanto à aplicação do princípio da adequação social, esse, por si só, não tem o condão de revogar tipos penais. Nos termos do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (com alteração da Lei n. 12.376/2010), não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. 3. Mesmo que a conduta imputada aos Pacientes fizesse parte dos costumes ou fosse socialmente aceita, isso não seria suficiente para revogar a lei penal em vigor. 4. Habeas corpus denegado.

    No sentido contrário, é a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

    CASA DE PROSTITUIÇAO. DESCRIMINALIZAÇAO POR FORÇA SOCIAL. À sociedade civil é reconhecida a prerrogativa de descriminalização do tipo penal configurado pelo legislador. A eficácia da norma penal nos casos de casa de prostituição mostra-se prejudicada em razão do anacronismo histórico, ou seja, a manutenção da penalização em nada contribuí para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, e somente resulta num tratamento hipócrita diante da prostituição institucionalizada com rótulos como 'acompanhantes', 'massagistas', motéis, etc., que, ainda que extremamente publicizada, não sofre qualquer reprimenda do poder estatal, haja vista que tal conduta, já há muito, tolerada, com grande sofisticação, e divulgada diariamente pelos meios de comunicação, não é crime, bem assim não será as de origem mais modesta e mais deficiente economicamente. Apelação improvida. Unânime (Apelação Crime n.º 70000586263, 5ª Câmara Criminal, TJRS, Rel. Des. Aramis Nassif, j. em 16.02.2000).

    Subjacente a isso, além da questão moral, está a discussão sobre os limites do poder punitivo do Estado. A questão fundamental reside em saber, portanto, se o Estado, contrariamente à vontade dos próprios indivíduos que pretende proteger - indivíduos adultos e capazes -, pode criminalizar, direta ou indiretamente, certas práticas tidas como ofensivas à dignidade da pessoa humana, concretamente considerada.

    Nélson Hungria, ao sustentar a legitimidade da intervenção penal no particular, afirmava:

    Talvez se afigure, prima facie , que nos países, como o nosso, em que não se proíbe a prostituição em si mesma, seja injustificável a repressão dos lenões, pois, se tal ou qual fato é permitido ou penalmente indiferente, não se deveriam, coerentemente, incriminar os que lhe são famulativos ou acessórios ( accessorium sequitur suum principale ). Este raciocínio, porém, estaria abstraindo que a política criminal muitas vezes desatende à lógica, para seguir critérios de oportunidade e conveniência. A prostituição é tolerada como uma fatalidade da vida social, mas a ordem jurídica faltaria à sua finalidade se deixasse de reprimir aqueles que, de qualquer modo, contribuem para maior fomento e extensão dessa chaga social. Se a prostituição é um mal deplorável, não deixa de ser, até certo ponto, em que pese aos moralistas teóricos, necessário. Embora se deva procurar reduzi-la ao mínimo possível, seria desacerto a sua incriminação. Sem querer fazer elogio, cumpre reconhecer-lhe uma função preventiva na entrosagem da máquina social: é uma válvula de escapamento à pressão de recusável instinto, que jamais se apazigou na fórmula social da monogamia, e reclama satisfação até mesmo que o homem atinja a idade civil do casamento ou a suficiente aptidão para assumir os encargos da formação de um lar. Anular o meretrício, se isso fora possível, seria inquestionavelmente orientar a imoralidade para o recesso dos lares e fazer referver a libido para a prática de todos os crimes sociais. [1]

    Em termos semelhantes, e com uma argumentação um tanto curiosa, dizia Magalhães Noronha:

    Enquanto a casa paterna e das famílias se fecharem para a donzela seduzida; enquanto a mulher viver na dependência econômica do homem e enquanto todos os adultos não casarem aliás, bem cedo -, haverá prostituição. Pode ela variar de forma, tomar diversos aspectos de portas abertas, clandestinamente etc. - mas existirá sempre. Imagine-se se hipoteticamente conseguisse o Estado asilar e acolher em estabelecimentos de assistência social todas as infelizes, qual a situação dos milhares de milhões de homens solteiros e viúvos? É visível que mais que nunca o homossexualismo campearia e se multiplicariam assustadoramente os atentados contra a honra das famílias. De uma coisa podemos estar certos: não é pelo fato de considerá-la crime que desaparecerá. [2]

    Enfim, o discurso punitivo é essencialmente o mesmo: embora a prostituição seja inevitável e até necessária, ela é em si mesmo um mal, uma atividade imoral e repugnante, que não pode ou não deve ser criminalizada. No entanto, a criminalização de quem explore a prostituição está plenamente justificada.

    Temos que semelhante discurso, além de grandemente hipócrita, é insustentável político-criminalmente.

    Em primeiro lugar, porque as pessoas (homens e mulheres adultas) são, em princípio, livres para disporem de seus corpos como bem entenderem, podendo fazê-lo gratuita ou onerosamente. E o Estado (penal) não pode nem deve pretender proteger pessoas adultas e capazes contra suas próprias decisões, como se fossem crianças indefesas.

    Em segundo lugar, porque, contrariamente ao que pretende o discurso punitivo, aquilo que não pode ou não deve ser proibido/criminalizado pela via direta (v.g., uso de droga, prostituição etc.), não pode nem deve (como regra) ser proibido/criminalizado pela via indireta. Consequentemente, também a conduta do sujeito/empresa que explore a prostituição não pode nem deve ser tipificada, razão pela qual a atividade deve ser autorizada e legalmente explorada.

    Em terceiro lugar, porque proibir a casa de prostituição não é controlar nem prevenir, mas simplesmente remeter a atividade proibida para a clandestinidade, onde não existe absolutamente nenhum controle (oficial), razão pela qual a intervenção penal é no particular absolutamente inadequada e contraproducente, pois cria mais problemas do que resolve.

    Em quarto lugar, porque, uma vez regulamentado o exercício da prostituição, poder-se-ia exercer um controle mínimo por parte do Estado, visando a proteger clientes e prestadores de serviço, assegurando-se-lhes, inclusive, como toda atividade legal, direitos trabalhistas, previdenciários etc.

    Em quinto lugar, porque, a pretexto de proteger, por meio da criminalização, a dignidade da pessoa humana, tais indivíduos ficam, em verdade, absolutamente desprotegidos e vulneráveis, e submetidos a toda sorte de violência e constrangimentos ilegais. E, mais, a pretexto de tutelar a dignidade da pessoa humana, o Estado acaba por negá-la e violá-la manifestamente, tratando tais indivíduos, não como sujeitos de direito, mas como simples objeto, negando-se-lhes a liberdade de decidirem por conta própria.

    Em sexto lugar, porque a casa de prostituição é, em princípio, um crime sem vítima (exceto quando envolva incapazes). E eventuais crimes (maus-tratos, sequestro ou cárcere privado, extorsão etc.) contra prostitutas (ou clientes) já são autonomamente puníveis.

    Finalmente, não é preciso muito esforço para imaginar atividades que, embora legais, sejam mais indignas ou penosas do que o exercício da prostituição, especialmente em razão das condições degradantes, desumanas etc. Nem cabe ignorar que a prostituição está presente em todos os lugares: jornais, televisão, cinema, internet, outdoor, casas de massagem etc., a demonstrar uma evidente incompatibilidade entre a tolerância real e a intolerância legal.

    Enfim, quanto à prostituição e outras tantas atividades, embora o Estado possa intervir por outros meios mais adequados e menos lesivos à liberdade, não está minimamente justificada a criminalização, quer direta, quer indiretamente, motivo pelo qual a pena pública constitui uma violência absolutamente despropositada.



    [1] Comentários aoCódigo Penall. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 169/170.

    [2] Direito Penal. S.Paulo: Saraiva, 2003, p. 213.

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